terça-feira, 17 de novembro de 2009

Ficção não é mentira


Amplie a imagem. Vai por mim: compensa!


_ Tudo o que você vê no cinema é mentira, meu filho. Os livros, os filmes, as lendas: mentiras que as pessoam inventam! Nada disso existe!


Assim uma mãe cuidadosa suavizou meus medos infantis, diante de filmes terríveis como King Kong ou O Planeta dos Macacos. O quê? Você não os achou terríveis? Bem, eu era novo demais, talvez...


Agradeço a boa vontade. Acho que dormi melhor em algumas noites daquela infância tão distante. Mas, mãe, acredite: você estava errada. 

O que a gente vê no cinema, nos livros, nos contos populares, não são mentiras. São formas diferentes de dizer, cada homem e cada mulher, a sua própria verdade. E a verdade de um indivíduo nunca é uma mentira, mesmo que pareça estranha ou feia demais. O mesmo ocorre com as religiões, que não são mais que a sacralização de um ponto de vista.


Com essa descoberta deixei para trás um mundo muito pobre, onde as possibilidades eram um canteiro estreito e todos pretendiam viver a mesma vida, cercados por  um muro de concreto.  A arte foi a porta para a liberdade.


Quando você olha para uma escultura, passa pela sua cabeça que ela seja uma mentira? Uma ilusão? Não, é claro. Ela está ali, palpável. Você sabe que ela é resultado da manipulação da matéria-prima e que o escultor imprimiu, com sua técnica, um olhar pessoal.



Da mesma forma, a ficção não é uma mentira! É a arte de modelar a vida e repartir um sentimento diante dela.



Viver em um mundo sem o muro, vez ou outra ainda me amedronta. Nem sempre durmo tão bem como na velha casa de meus pais.



Mas nunca estive tão acordado!



 

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

A África nossa de cada dia.


  Leia como quiser, mas eu gosto mais ouvindo a música do texto de baixo.



Se Darwin não tivesse existido, ou se tivesse sido, sei lá, marinheiro ou comerciante, a teoria da evolução não faria parte de nossa história. Eu não teria como saber, olhando para os leões aí de cima, que temos ancestrais em comum e que há uma plataforma muito semelhante em nossas biologias.


Mas teria, ainda assim, um sentimento muito forte de identificação, impossível de evitar. Não dá para olhar esses dois, sem reconhecer com exatidão o sentimento de estar assim, em aconchego, tão pertinho de um igual. Cabeça com cabeça, o silêncio e mais nada...


O que causaria certos constrangimentos, como você pode imaginar:


_ Nosso pai não tá legal!

Ou então:

_ Isso só pode ser coisa do demo!

Ou pior:

_ Credo, se comparando com um leão? Qualquer dia vai se comparar com um jumento! Se bem que aí, talvez, pensando bem...

Mas são apenas hipóteses. Darwin enfretou os contrangimentos e a ira da resistência religiosa por mim.  E, também, isso tudo é só um pretexo para dizer que eu adoro encontrar um semelhante. Quis retratar isso em uma imagem e escolhi os bichanos para fazer uma ponte com o texto anterior, sobre a savana.


Lendo e sendo lido tenho encontrando cabeças bem próximas da minha! Cada uma por um motivo, mas todas deixando a mesma sensação de companheirismo. Gente generosa que me ensina, que me lapida e alimenta de olhares novos sobre o mundo. Prosa e poesia, filosofia e música, humor, drama... E de repente há uma colcha inteira de retalhos, formada por sentimentos, pensamentos e biografias que de tão múltiplos formam uma peça coerente! Tão colorida que me lembra a Poesia em Chita, da Zenilda Lua, que escolheu tão bem o veículo da sua delicadeza!


Rubem Alves, na "orelha" de um livrinho delicioso (Pergutaram-me se Acredito em Deus - Editora Planeta), fala sobre os rituais antropofágicos, lembrando que o que se buscava com eles era apropriar-se das virtudes da vítima. Um canibal não fazia seu ritual por razões gastronômicas. Queria a essência do devorado. Queria o que o outro tinha de forte, de grande, de belo! Quem escreve, ensina ele, oferece seu sangue para que circule no corpo de quem lê. O leitor, então,  assimila ou rejeita esse sangue conforme a afinidade.



Pense em seus mestres mais queridos e veja o quanto deles circula em você ainda hoje. O magistério, como vejo, é o sacerdócio que permite comer da carne alheia, sem diminuir a vida de quem tem a virtude que nos falta. Sorte do Luiz, professor e amigo que pouco a pouco tem me transformado em violonista e continua vivo!



No texto anterior, a Mai falou sobre a presença da África em nosso inconsciente coletivo. Respondendo por mim, acho que faz muito sentido. Quando penso "a duas cabeças", como disse a ela nos comentários, tenho a sensação boa de quem anda com sua manada, ou descansa com sua leoa.  


Enfim: leio como um canibal e ofereço o que escrevo como quem alimenta uma tribo.


Darwin, Rubem, vocês me salvaram da camisa-de-força!




terça-feira, 3 de novembro de 2009

Homo Sapiens



Não, não sou eu, apesar da semelhança...


Quando abriu os olhos na savana, de alguma forma ele era eu. 

Mas não totalmente.

Era um protótipo de mim. Um antepassado que, claro, não se sabia assim. Era e pronto.


Ao longo da sua vida, que deve ter sido curta, teve dúvidas muitas vezes. E teve medo muitas vezes. E fome de umas coisas que ele conhecia e de outras que nem imaginava. Em muitos dias não soube o que fazer e, quando descobriu, não sabia como. Se não fosse assim, se não houvesse essa angústia, não teria inventado a arte e se empenhado tanto em deixá-la registrada. Está lá, em cada caverna pintada.

Em uns dias ele soube como se proteger da solidão. Eu disse uns dias...



Entre um e outro desses episódios ele caçou também, porque algumas fomes, como todos sabemos, não se resolvem com tintas e idéias. E, mesmo, não havia bolsa tribo, auxílio caverna ou coisa parecida. 

Acasalou muitas vezes e com certeza não se perguntou absolutamente nada no momento de cada gozo. Poucas coisas a gente pode afirmar pelo outro e essa é uma delas. Dúvida existencial pode surgir um instante antes e outro depois. Mas durante le petit mort, mesmo,eu duvido.


Quanto aos filhos, ensinou o que sabia, alimentou com o que dispunha e protegeu como pode, com razoável sucesso, é evidente. Caso contrário não haveria ninguém para pensar nisso agora. 

Essa história poderia acabar aqui, mas falta um pedaço.


É que hoje eu abri os olhos cheio de fome. De umas coisas que eu conheço e de outras que só imagino. Cheio de dúvidas. Cheio de medo. Nos últimos quarenta anos muitas vezes não soube o que fazer. Quando descobri o que fazer, não sabia como. Sei que preciso caçar, pois há filhotes para fazer crescer, para alimentar, ensinar, proteger. Há hienas urbanas e contemporâneas esperando minha indecisão. Cabe a mim fazer com que fiquem esperando.


Já sei também que a arte ajuda a sobreviver na savana. Se você está aqui, conhece as paredes da minha caverna virtual.



O fato é que quando eu abri os olhos nesta manhã, de alguma forma eu era ele.


Mas não totalmente.