terça-feira, 26 de novembro de 2013

Minha origem.


Nasci filho de uma mendiga, em Apucarana - Norte do Paraná. Dela não sei quase nada e do meu pai, nada mesmo. Contaram-me que ela morava na rua, perto de um terminal rodoviário, onde me alimentou até os trinta dias de idade com uma rica dieta de café com leite. Plenamente justificado, portanto, meu fascínio por café.

Quando eu já era um homenzinho com trinta dias de vida e dono do meu narizinho melecado, ela me entregou a uma mulher que passava. Disse que havia dado naquele mesmo dia um menino de quatro anos e estava indo embora da cidade. Foi assim que recebi o nome Ciabattari. Não me lembro de meus sentimentos naquela época, é claro. Mas devo ter sentido falta do café e tavez do movimento dos ônibus. E dela.

Saudades à parte, a coisa estava melhorando: Saí das ruas, tiraram minhas craquinhas de sujeira, tinha até um berço!!! Yes!!! Mas um médico mal-humorado quase estraga tudo! Música de suspense, por favor. Primeiro diagnóstico, feito assim, de olho ("nem precisa exame, tenho experiência", disse):

_ Esse menino tem Síndrome de Down e Sífilis; é melhor se livrar dele o mais rápido que puder... Se ele sobreviver, o que é difícil, vai carregar muitas sequelas!

Humpf!!! Tentei protestar fazendo uma careta bem feia, mas ninguém prestou atenção, ou então achou que a careta era sintoma da doença.

Para minha sorte, o segundo médico a me examinar ainda se lembrava do Juramento de Hipócrates. Pediu exames, observou o feiosinho mais de perto e percebeu que o que parecia doença era só a falta de condições adequadas, nada mais. Ahá! Pensei comigo: Alguém ponha "Carruagens de Fogo" pra tocar, que minha corrida está só começando! Como você vê, eu era um bebê cinéfilo.


Dois detalhes desse episódio chamam muito minha atenção.

Primeiro, que eu não comecei bem minha carreira de sex symbol. A pobreza deve ter deixado naquela (nesta) criança marcas muito tristes, como deixa em tantas outras todos os dias. Nada mais justifica um diagnóstico, embora desastrado e de uma incompetência criminosa, tão pessimista.

Segundo, que a mulher e o homem que me adotaram foram muito corajosos em aceitar o desafio. Eles nem queriam adotar ninguém e já tinham um casal de filhos perfeitos. No caminho do Drumond tinha uma pedra; no deles, um bebê esquisito, filho de uma mulher que desapareceu. Naquele momento eles tiveram de usar da liberdade a que estavam condenados. Devem ter discutido muito e levado em consideração uma porção de coisas: A despesa, o tempo, os cuidados com uma criança em condições tão precárias, os preconceitos de parte da família (sim, existiram)... Tantas preocupações para quem nem queria um filho! Mas, enfim: fiquei no time.

Um ano e muita papinha depois (Sem café! Nada é perfeito...) conseguiram me deixar bem bonitinho e até tiraram a foto que ilustra este relato!

Obrigado, mãe!

Obrigado, pai!

Obrigado, médico desconhecido que fez com competência o seu trabalho!

De lá para cá... Bem, de lá para cá fui ficando feio de novo, mas já não é culpa deles, a vida é assim mesmo.

O tempo foi passando, como costuma acontecer. Tive muitos motivos para rir, muitos para chorar e o que importa é que, uma por uma, minhas feridas têm cicatrizado. Houve tantas na alma, que as do corpo desapareceram nas curvas do esquecimento. Mas nenhuma sem remédio: O afeto, o conhecimento e a arte curam todas as dores deste mundo.


Hoje penso nos mais de quarenta anos que se seguiram àqueles dias. Tive tantas oportunidades por causa das chances que me deram, quando eu era tão fraco e indefeso! Minha memória tem tantas gavetas, todas tão cheias, tanta vida aconteceu depois!Sou, de alguma forma, filho da coragem. Um mestiço que traz em si, bem misturados, dois sangues: o da liberdade e o do dever bem cumprido. Sinto-os como dois rios nítidos em mim. Se um deles estivesse seco à minha volta naquele abril de 1.969, eu não usaria um blog para me comunicar. Usaria um médium.

Naqueles dias eu ainda não estava condenado à liberdade, como Sartre ensinou. Estava condenado à morte. Era tão pequeno, frágil e doente, que dependi das escolhas de outras pessoas para sobreviver, sem nem me dar conta disso.

Agora sou um homem.

Tão livre quanto um homem pode ser, com todas as cores e as dores que a escolha sempre trás. Exercito essa liberdade como posso e tento honrar todos os dias o direito que recebi de continuar vivo.

Ainda ouço Carruagens de Fogo ao fundo da cena.

E quem quiser, que conte outra...


É simples assim:


Não existe amor sem amizade. 

Não existe amizade sem respeito.
Você pode chamar as coisas como quiser, claro. 
Pode dar o nome de amor para qualquer coisa. 
Até para aquela relação em que não existe uma amizade verdadeira e, nem ao menos, respeito.
Mas amor, não é. 

E ponto.